Instável

O Miguel já começou a fazer fotografias. Embora ele saiba o valor da contenção, temo sempre que o simples click da máquina seja um factor de distracção para os actores — obviamente, engano-me na minha histeria sem ruídos (além do mais, o ruído faz parte do trabalho, integra-o e, por assim dizer, expõe-no na sua sempre fascinante impureza). Gosto particularmente desta, do seu (des)equilíbrio.

Lentamente

O pressentimento do espaço desenha novos gestos nos gestos dos actores. Daí que o projecto do cenário introduza novos e, por vezes, desconcertantes elementos nos ensaios: uma cadeira no lugar de uma cadeira, um banco no lugar de uma mesa, um qualquer vazio a simular outro vazio. Lentamente (gosta da lentidão...), os actores vão começando a representar em função de uma cenografia que ainda não está lá mas que, por assim dizer, se pressente no movimento dos corpos. Antes mesmo de uma qualquer parede erguida, sabemos que haverá uma espécie de caixa de ressonância — em sentido duplo: transfigurará o som e fará com que as palavras sejam relançadas para os actores, interrogando os próprios modos de dizer e fazer.

Quantas maneiras há de dizer um "sim"? E um "não"? Como é que se diz "vai-te foder"?

Lá fora

Quase sempre, quando uma personagem olha para fora do cenário em que a descobrimos, pressentimos que não sabemos tudo sobre ela (Myriem Roussel, em Eu Vos Saúdo, Maria, 1985, de Jean-Luc Godard) — e queremos saber mais.

Cenografando

Converso com João Mendes Ribeiro sobre o cenário. Provavelmente, um cenário é menos um espaço para representar e mais a primeira personagem de uma representação. Não se trata apenas de "colocar" as personagens numa divisão, seja ela qual for, mas de encontrar uma paisagem que, sendo exterior, revele muitos interiores. Com janelas ou sem janelas.

Defesa e cinema

O "filme de Verão" segundo Mamet (*):

(...) The summer film is, first and last, a display of mercantile triumph--it is a display of technology. Its attraction rests not on our desire for drama (the purpose of art being to conceal art) but on our desire for self-congratulation--on the display of technology per se. Now the highest achievement of American postindustrial achievement, the last best claim for American preeminence, is our technology. It is most handily displayed in the Defense Department and in the movies. In both we see the most shockingly novel rendition of the human capacity for elaboration. (...)

* Publicado na revista de Francis Ford Coppola, Zoetrope All-Story (vol. 3, nº 1, Primavera 1999)

Corpo a corpo

O cenário como corpo que faz corpo com o corpo da personagem (aliás, do actor/actriz): Shirley McLaine em Irma la Douce (1963), de Billy Wilder — cenografia de Alexander Trauner.

Cenário?

O que é um cenário?
Um espaço para inscrever uma acção?
Ou uma acção que se dissolve num espaço?
Velha questão "académica": a "forma" e o "conteúdo". Privilegiar a forma ou explicitar o conteúdo?

Álbum de família (6)

Roland Barthes e a mãe
in "Roland Barthes par Roland Barthes"
(Seuil / Paris, 1975)

O engasgamento

Leio-lhes estas linhas:
A fala é irreversível, é essa a sua fatalidade. O que foi dito não se pode emendar, salvo se for aumentado: corrigir é, aqui, estranhamente, acrescentar. Ao falar, nunca posso apagar, safar, anular; tudo o que posso fazer é dizer «anulo, apago, rectifico», em suma, falar uma vez mais. A esta singular anulação por acrescentamento chamarei «engasgamento». O engasgamento é uma mensagem duas vezes falhada: por um lado, compreende-se mal; mas, por outro, com esforço, apesar de tudo compreende-se. Ele não está verdadeiramente nem na língua nem fora dela: é um ruído de linguagem comparável à sequência de golpes pelos quais um motor dá a entender que está mal de saúde: é este precisamente o sentido da falha do motor, sinal sonoro de um revés que se perfila no funcionamento do objecto. O engasgamento (do motor ou do sujeito) é em suma um medo: tenho medo de que a máquina possa vir a parar.

Roland Barthes
in "O Rumor da Língua" (Edições 70 / Lisboa, 1987)