M-e-m-o-r-i-z-a-ç-ã-o

Por vezes, nos seus exercícios de memorização, a Sofia e o Ricardo dão as mãos sobre a mesa de trabalho, deixam cair a cabeça para a frente e dizem o texto quase sussurrando, embora não anulando algumas entoações. Algumas dessas vezes, a violência do que se diz tem como contraponto a estranha intimidade do dizer, do esforço cúmplice para fixar o texto. Gostaria que momentos como esses pudessem fazer parte do próprio espectáculo (seria, provavelmente, uma obscenidade).

Meisner: a verdade

Em 1985, Nick Doob realizou um documentário sobre Sanford Meisner (1905-1997), figura tutelar do teatro americano, membro do lote inicial de actores do Group Theater (fundado em 1931 por Harold Clurman, Cheryl Crawford e Lee Strasberg). O título: Sanford Meisner: The Theatre’s Best Kept Secret. Entre os muitos convidados (Robert Duvall, Elia Kazan, Mary Steenburgen, Sydney Pollack, Eli Wallach, etc.), incluía-se David Mamet que referia o modo de trabalho de Meisner e a certeza que dele advinha: "Sabíamos que estávamos a ser expostos à verdade." Eis a abertura do documentário (incluindo esta frase de Mamet) — duração: 9m 54s.

Tragédias americanas

Ilustração: Zach Trenholm

Há dez anos, em Outubro de 1997, David Mamet deu uma entrevista a Richard Covington, para o site Salon.com. Mesmo, ou sobretudo, quando podem ser muito discutíveis, as ideias de Mamet (p. ex.: a visão, a meu ver, demasiado sumária de A Lista de Schindler, de Steven Spielberg) são absolutamente fascinantes, vivas e desafiadoras. Pela conversa passam o tema, emblemático na sua obra, da culpa interior dos judeus, além de referências à relação de Hollywood com os escritores/argumentistas ou ao papel religioso dos "filmes de Verão". A certa altura, Mamet analisa o modo como a tensão amor/violência está expressa em Theodore Dreiser (An American Tragedy), sublinhando a sua perturbante actualidade:

You said in your recent book of essays, "Make Believe Town," that Theodore Dreiser's "An American Tragedy" was your favorite American novel and that the story shows how violence takes precedence over love in America. Could you explain that a bit?
If you look at "An American Tragedy," which I've always considered the great American novel, the reason it's specifically an American tragedy is that the problem with the hero is that he sees love as basically a commercial endeavor. He wants to trade up. He finds this perfectly nice girl who wants to sleep with him and who loves him and whom he's very fond of and then he finds someone he likes better. And the only way he can get rid of the first girl is to kill her. That's the American tragedy.
How has that changed over time?
I don't think it has. It's still a problem of the national character. I don't think any country has it better than any other country. For example, in Scandinavia, they have to eat very, very salty fish. One wouldn't want to live like that either. But in America, our problem is we're a consumer culture and there's nothing we won't do if someone tells us -- or we intuit -- that it's going to make money, or it's going to make us happy through consumerism. That's our American problem. It's the American equivalent of the salty fish. We're constantly buying crap we don't need and devoting ourselves to endeavors which, perhaps on reflection, with a little bit of distance, would reveal themselves to be contrary to our own best interests.

Leitores

Em que país estamos a trabalhar? Este em que, no contexto de um programa de televisão (Casamento de Sonho, TVI), se propõe esta visão do espaço conjugal (os erros de escrita são de origem).


2007-10-27 20:45
Só sabem ler
Que intelectuais!
Enquanto esperam pelo petisco, os noivos lêem.
Como não têm nada para fazer, foi assim o dia todo, e como o jantar ainda não está pronto, maior parte de dos concorrentes lê.
Bruno finaliza agora mesmo a leitura de um livro. João e Angélica, sentados no sofá, também estão a ler.

Em boa verdade, confesso a minha fragilidade: consigo imaginá-los como Ruth e Nick — quero imaginá-los como Ruth e Nick. Violência contra violência — guerra das linguagens.

(Cena 1)

Ruth (...) Ouvi falar dos Vikings. As mulheres Viking.
Ficavam em casa a costurar.
Esmagavam as cabeças dos bebés.
Todas as meninas.
Matavam-nas. Sabias, Nicky?
Nick Sim.
Ruth À nascença?
Nick Sim.
Pausa.
Ruth Sabias disso?
Nick Sim. Dos livros.

Álbum de família (5)

Maruschka Detmers e Jacques Bonnaffé em Prénom Carmen / Nome Carmen (1983), de Jean-Luc Godard — o esplendor da mulher ecoa na comoção do homem. E, no entanto, ele não é patético, mas genuinamente trágico: como posso ser digno da tua beleza? O televisor vigia, mas, por uma vez, reduzido ao puzzle silencioso do que ainda não se constituiu como imagem. Conheço esta imagem de cor e, no entanto, cada vez que a olho, dói. Não quero que essa dor pese em ninguém, aprendi que não é possível transferi-la para ninguém. E não terá sido desumano desejar semelhante transferência? Mais prosaicamente, atrevo-me a pensar que os 90 minutos do nosso espectáculo talvez possam conter um ligeiríssimo detalhe da emoção que aqui se fixou, numa eternidade sem nome, sem Deus. Amen.

E a beleza é isso.

(Algures na cena 2. É Ruth que fala.)

O corpo diz que precisamos das coisas.
Vêm todas da terra.
Os vegetais.

Minerais.
Todos os comprimidos e óleos.
Tudo vem da terra, de uma maneira ou de outra.
Depois comemos.
Medicina... Tenho pensado nisto...
O que eles nos dão são tudo coisas que vêm da terra.
Ou que nós fazemos. Concentradas, ou transformadas por nós, para as podermos engolir.
Todas as coisas vêm da terra.

E descobriram que as pessoas acabariam por comê-las.
Ficamos com as boas e recusamos as más.
Vi os peixes apanharem insectos do ar.
É tudo bom. São as coisas como elas são.

Como sempre foram.
O que são e o que fazem.
E a beleza é isso.

Sex & violence

(Cena 2)

Ruth Pára, Nick.
(Ele rasga-lhe as calças.)
Rasgaste-as, podes parar, por amor de Deus? Estás a ser bruto.
(Ele dá um pontapé na garrafa.)
Estás a dar pontapés na garrafa.
Está bem. Está bem.
Espera.
Pára um segundo.
(Ele tapa-lhe a cara com a gabardine.)
Só um segundo. Ai. Okay. Pára um segundo, por favor.
(Ele prepara-se para se deitar sobre ela.)
Não, espera!
Espera.
Não vejo nada!
Não. Espera. (Afasta a gabardine e desloca-se um pouco para longe dele.)

Sexo. Violência. Sempre interessante, claro. Porquê? Porque queremos ver. Queremos saber.
E tão fácil, não? Tão fácil expor o contacto físico, elevar a voz, gritar. Ah, gritar é bom...
No entanto, lição do dia... A facilidade engana. Como sempre. A facilidade engana sempre. E a sua súbita emergência coloca-nos um primeiro problema, eminentemente de representação, visceralmente humano. Ou seja: antes, onde estava essa violência? Antes, que sexo havia? Onde estava o grito antes de ser gritado?
Segundo problema, bizarramente sensual: depois? Onde se pressente o sexo, onde fica a violência, depois?

O tempo, a duração

De onde vêm Ruth e Nick?
De forma mais banal, ou melhor, mais básica: aquela estadia na cabana corresponde a um fim de semana "ligeiro", de dois jovens adultos numa relação transitória, ou é algo que transporta a memória de um tempo vivido em comum?

Podemos até quantificar. Encontram-se há algumas semanas? Estão juntos há, digamos..., seis meses? Partilham uma casa há um ano? E, dramaticamente, o que é um ano, 12 meses, 365 dias? Será essa a métrica "obrigatória" da primeira crise?

O problema do tempo instala-se, não como um mero detalhe de sinopse ("o que aconteceu antes disto?"), mas sim como um drama interno do próprio labor teatral. Daí a necessidade de um nova palavra — não só o tempo, mas a duração.

(Gosto, em particular, da palavra francesa para o dizer: durée. La durée).

Álbum de família (4)

Warren Beatty e Natalie Wood sob o olhar de Elia Kazan: Esplendor na Relva (1961) — vi este filme no antigo cinema Monumental, numa "sessão clássica" das 18h30, com os mais de mil lugares da sala ocupados por espectadores.

Vampiros

Foi no sábado, algures a meio da tarde. Nas primeiras páginas da cena 2 tentávamos encontrar as nuances de um (re)lançamento da acção em que se pressente já o assombramento da violência verbal e física que se vai manifestar. Pedi à Sofia e ao Ricardo que repetissem essas primeiras páginas (oito ou nove). Eis senão quando, chegados ao final do fragmento, ambos continuam a ler sem pausa, sem hesitação... até ao final da cena, 30 páginas mais à frente.
Num certo sentido, com todas as suas hesitações e imprecisões, este foi um daqueles momentos que eu gostaria que fosse possível integrar na representação — Ruth e Nick assombrando as vozes e os gestos dos actores. Um filme de vampiros em registo estritamente realista. Aliás, teatral.

Mamet e os computadores

Texto intitulado 'This computer thing', publicado a 9 de Maio de 2005 no blog de David Mamet, em The Huffington Post.

I understand that computers, which I once believed to be but a hermaphrodite typewriter-cum-filing cabinet, offer the cyber literate increased ability to communicate. I do not think this is altogether a bad thing, however it may appear on the surface.

If, for example, all humans were linked, one could arise in any time zone and type in “Oh look, what a nice day,” thus potentially cheering portions of the world engaged in lachrymose meditations on the economy or the environment.

No doubt, however, someone, swine that we humans are, would perceive that the happy report (“what a nice day”) need have no actual connection to the weather. This individual, having, perchance, subsequently, gone to the dark side, might employ his talent for improvisation, once plied but in the cause of humanity, to wreak havoc – misstating, misanalyzing, or outright lying about the facts he had perceived. Soon, then, these computer “blogs”, would be as little deserving of our trust as are the books, journals, films, broadcasts, dramas, and flyers upon which we already depend for that we have come, in our need, to applaud as “information”.

A reflective person might opine that such a state of corruption must have already occurred, and that there is nothing, no matter how apparently “handmade”, in which one might put his unalloyed trust. I know there is such a person as “Arianna Huffington”, as I have had dinner at her house. There I met people as befuddled as myself about the state of the world, and as confused as to whether or not a vast coup had occurred in our government. I report further that this “Arianna Huffington” asked me to write for this computer thing. I hope you believe this report.

Love of gold

Cena de Heist/O Golpe (2001), de David Mamet. Mike Tsarouchas interpreta o homem da banca de cafés; Gene Hackman é Joe Moore, chefe dos assaltantes; Delroy Lindo representa Bobby Blane.

Coffee Cart Man: Hey buddy. You forgot your change.
Joe Moore: [Takes the change] Makes the world go round.
Bobby Blane: What's that?
Joe Moore: Gold.
Bobby Blane: Some people say love.
Joe Moore: Well, they're right, too. It is love. Love of gold.

Sexo

É preciso falar de sexo — do sexo que as personagens fazem e que não está na peça. Chega a ser didáctico como um relatório médico: o modo, o número de vezes, o cansaço, a dor, o desencanto. Ajuda a compreender. A compreender o quê? Como o sexo está em tudo, sobretudo no que não é sexual. Depois, passa-se à frente. E a beleza é isso, diz Ruth, mas não está a falar de sexo.

Álbum de família (3)

Betty (1977), óleo sobre tela de Gerhard Richter.

Álbum de família (2)

Álbum de família (1)

Piper Laurie e Paul Newman num foto promocional de The Hustler/A Vida É um Jogo (1961), de Robert Rossen — o filme, fotografado por Eugen Schüfftan, é a preto e branco.

Na Sala Vermelha

Adoro o espaço da sala mais peque-na do Teatro Aberto, a Sala Vermelha. Desde logo pela sua funcionalidade: as cadeiras podem ser deslocadas, permitindo criar zonas específicas — para o palco e para o público —, diferentes de peça para peça. Lembro-me de já ter visto até uma solução de palco longo, como uma espécie de passerelle (em 2003, na encenação de Copenhaga, de Michael Frayn, por João Lourenço), com o público colocado de um lado e do outro. Desta vez, de acordo com as directrizes estabelecidas com o cenógrafo João Mendes Ribeiro, teremos um espaço mais "clássico", com a plateia organizada de um lado e o espaço de representação, em rectângulo, ao longo de toda a largura da sala — digamos que vamos ter uma "distensão" que se adequa, de imediato, ao ambiente particular da varanda, essencial no tipo de casa em que a acção decorre.

Música(s)

Pelas 21h00, quando começamos a parte noturna do nosso ensaio, ouvimos vozes de ópera. Vêm dos corredores ou, então, estranhamente, das casas de banho: são os cantores do Sweeney Todd, de Stephen Sondheim, encenado por João Lourenço, em cena na Sala Azul do Teatro Aberto (nós estamos na Sala Vermelha). É um som forte e saboroso. Os actores não se desconcentram — aliás, até brincamos, sugerindo que talvez as vozes ajudem a uma melhor dicção...
Vale a pena sublinhar o curioso contraste: a música de Sondheim conduz-nos de artifício em artifício até à instalação de um clima de verdadeira tragédia (e, com todas as suas ironias, a encenação do João está imbuída de um metódico negrume); no caso dos diálogos de Mamet, a "banalidade" das suas referências vai-se adensando numa teia que, em última instância, possui uma musicalidade própria. Estamos à procura da pauta afectiva e sonora dessa musicalidade. A Sofia e o Ricardo também cantam.

Cenário a / cenário b

A
Um par, Ruth e Nick — Sofia e Ricardo.
Uma cabana.
Um lago ali perto.
Um bosque mais ao longe, ou apenas um bosque inscrito no mapa convulsivo das memórias.

O espaço deverá ser realista. Até certo ponto. O que quer dizer até certo ponto? Quer dizer que, no limite dramático e dramatúrgico do texto de Mamet, Ruth e Nick se entregam a um exercício que compromete toda a verdade do cosmos. Eles não sabem.
Eles não sabem?

B

15 de Outubro de 2007, 17h00

Primeiro ensaio.
Descoberta/redescoberta, confirmação e surpresa: o texto de Mamet é um prodigioso exercício de iluminação de todas as ambivalências humanas.
* Que fazem Ruth e Nick num fim de semana, algures numa cabana junto a um bosque?
* Têm uma relação anterior longa ou meramente circunstancial?
* Amam-se ou "fazem sexo" de vez em quando?
* Foram para ali para decidir alguma coisa do seu futuro ou por um mero movimento de enfado, a ver o que acontece?...
* Ele tem medo do que sente. Ela sente tudo o que faz medo.
* Falam um com o outro ou não há mais que dois monólogos intercalados?
* Realismo ou delírio cósmico?

2004

Sofia Aparício, com Rui Morrison, em Terra dos Mortos, de Neil LaBute, encenação de João Lopes — uma das três peças do espectáculo Paisagens Americanas (2004), co-encenado por Rui Pedro Tendinha e João Lopes, na Sala Azul do Teatro Aberto (devido a um acidente, Rui Morrison viria a ser substituído por Pedro Lima).

1999

Sofia Aparício, com Rui Morrison, em Mal (1999), de Alberto Seixas Santos, um filme onde prevalece a sensação de que já ninguém pertence a lugar nenhum — tempo realista, realismo dos tempos.

2004

Ricardo Trêpa, em O Quinto Império (2004), de Manoel de Oliveira — afinal, existe um cinema histórico português, isto é, um cinema que arrisca lidar com os imponderáveis da história portuguesa.

1991

Peter Weller na capa da edição alemã, em DVD, de The Naked Lunch (1991), de David Cronenberg — é um actor sem tipo definido, rebelde a qualquer cliché.